A Editora Baioneta e a Revista Opera têm o prazer de anunciar a impressão de uma segunda edição do livro “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil“. Para essa edição, realizada um ano após o lançamento do livro, os autores prepararam um prefácio no qual atualizam e discutem alguns acontecimentos no Brasil e no mundo desde o lançamento do livro.

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Passado um ano desde a publicação da primeira edição deste livro, podemos, além de constatar os últimos acontecimentos, refletir sobre o próprio trabalho, que é repleto de potencialidades. Aqui o leitor encontrará um tipo de comentário crítico, polêmico, voltado para a discussão política, que se resume no argumento que chamamos de “Carta no Coturno” — a ideia de que a ameaça do uso da força militar é uma constante, o que força a volta de um partido fardado para o palco político brasileiro na conjuntura atual. Articulamos fatos, valores e pressupostos em uma linha lógica; tiramos uma conclusão central e esboçamos algumas conclusões subordinadas, no sentido de um propósito que é político, voltado para decisões. Os argumentos ressoam como disparos de uma metralhadora verbal, que por vezes pode super-aquecer ou precisa ser recarregada — a dupla que conduz a máquina não pode vencer uma guerra, mas pode fazer estragos enquanto defende um flanco ou apoia uma ofensiva maior. “Entre o território da ação eficaz e da impossibilidade da ação, estende-se o domínio da escrita”, escreveu L. R. Salinas

O livro não descarta um certo devir analítico, um caráter mais conceitual ligado aos fatos,  mas não pode ser pensado como um trabalho acadêmico. Insistimos que sua função principal é colocar um problema político e constantemente ele usa essa constatação para bater em posições difusas dentro do assim chamado campo de esquerda, principalmente contra as concepções céticas em relação ao avanço militar e demasiado legalistas e liberais. No que diz respeito à academia, como fomos por outro caminho e já tínhamos uma boa ideia de como nos conduzir, não nos pareceu cabível consumir mais tempo fazendo um índice dos pensadores que pesquisam a questão militar no Brasil, mesmo que isso tenha grande potencial. Não que estudar a questão militar seja sinônimo de entender o problema político da “Carta no Coturno”, mas certamente existem diversos acadêmicos que podem contribuir para aqueles que se interessarem em estudar mais o problema.

Os argumentos remetem a um trabalho dos últimos cinco anos na Revista Opera, apesar do livro ter sido escrito em pouco mais de seis meses, e fariam bom uso de mais  tempo, devendo florescer durante esta próxima década. Essas reflexões poderiam ser muito mais amplas, tanto em sua discussão sobre o futuro como em sua fundamentação interpretativa do passado,  mas escrevemos sob a luz dos eventos recentes, em contraposição a posições que consideramos correntes na esquerda brasileira, de acordo com observações gerais que temos sobre o mundo e nossa formação ideológica, filosófica. Valorizamos a generalidade, os elementos empíricos, a objetividade, a correlação entre determinações e a causalidade – ao mesmo tempo, a obra é tensa, polêmica e comunica uma posição própria. Com todas as limitações possíveis, acreditamos que a análise original nos ajuda a compreender problemas básicos de nosso momento, sendo uma contribuição para todos que nos leram antes e depois do lançamento do livro. O tempo serviria para um trabalho ainda mais profundo, mas o grande dilema do próprio problema denunciado pelo livro é que o tempo urge. Uma coleção de fatos e declarações envolvendo os militares fortalecem nossa inferência, indicam que há um partido fardado atuando na política. Outros fatos históricos e construções ideológicas como a doutrina de segurança nacional contribuem para compreendermos esta atuação, delimitando os componentes da situação atual.

Devemos afirmar que o mais amplo de nossa tese nesse livro — isto é, de que a questão do poder militar seria central nos próximos anos — vem se confirmando desde a publicação. Por um acaso, precisamente no dia em que este fazíamos um lançamento no Rio de Janeiro, a revista Veja informava que, em entrevista, o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, declarara que o Brasil “esteve à beira de uma crise institucional entre os meses de abril e maio” que envolvia “uma rejeição dos setores político e empresarial e até de militares ao presidente Jair Bolsonaro”. Segundo Toffoli, um dos generais próximos ao presidente chegou a consultar um ministro do Supremo para saber se estaria correta a sua interpretação da Constituição segundo a qual o Exército, em caso de necessidade, poderia lançar mãos das tropas para garantir a lei e a ordem. Era um feixe de luz que vazava da caixa-preta governamental, informando-nos de que, de fato, havia coturnos que andassem com o presidente com um punhal no bolso. Chamamos atenção, ainda, a dois sucedidos:

1. Assistimos de fato a uma “guerra no governo”, revelada em diversos pequenos movimentos. Além da entrevista de Toffoli, relembramos das demissões do ministro da Secretaria-Geral, Gustavo Bebianno – que levou à ascensão do general Floriano Peixoto; do ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni – seguida pela subida do general Braga Netto; das demissões dos ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich – que levaram a uma gestão interina do general Pazuello, que já quase completa três meses à frente da pasta no momento em que este prefácio é escrito; o racha no partido pelo qual Bolsonaro foi eleito, a espetacular demissão do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e as trocas de farpas entre Olavo de Carvalho e os militares. Quanto mais se agudizavam as crises, mais os militares ganhavam espaço dentro do governo, como também fora previsto.

2. Também testemunhamos uma grave crise de disputa entre as instituições. Neste contexto, em que Bolsonaro avançava contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, vinha tendo o reforço de militares, da ativa e da reserva, do governo e de fora dele. A propósito, a crise mais grave, instaurada a partir de fevereiro de 2020, fora iniciada precisamente por alguns impropérios lançados e vazados por um general, Augusto Heleno. Chegou-se à altura em que o ministro do STF, Luiz Fux, teve de redigir documento em que afirma que “as Forças Armadas não são poder moderador”. Mas a isso respondia, por exemplo, um manifesto de militares autointitulados “504 Guardiões da Nação”, em que se afirmavam “verdadeiros destinatários e guardiões da Constituição Federal”. Mais importante que estas, e talvez ainda mais ridícula, foi a nota emitida em conjunto pelo presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, na qual declaravam que “as FFAA do Brasil não cumprem ordem absurdas, como por exemplo a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”, ou ainda a declaração de Luiz Eduardo Ramos, que negou golpismo — seria “ultrajante” falar em golpe — para revelar golpismo; “não estica a corda” foi o que disse. “Primeiro pela ameaça não proferida; segundo pela ameaça anunciada; terceiro pela ameaça consolidada”, assim definimos a escalada rumo ao “ordenamento único” militar. Nos parece que nos encontramos já em um terreno entre a primeira e a segunda onda, em que membros do Judiciário se defendem usando de interpretações cujo teor é resumível na afirmação “golpes são ilegais” e o Executivo, se sustentando nos militares, avisa que “não fazem coisas absurdas” porém também não as aceitam. O intérprete constitucional mira a conspiração e diz que ela não é permitida; o conspirador a olha e diz que nada tem a ver, mas que poderia. Ao fim, cada qual se envolve em uma disputa para ser o outro; o conspirador assegura para si a premissa de interpretar, o intérprete se envergonha por não poder conspirar. Sinal de que o intérprete não pode se defender — e que se vê obrigado a fazê-lo — e de que o conspirador não precisa atacar.

3. Também acertamos ao alertar que a grande armadilha política que viria com Bolsonaro seria a reação “demo-republicana”, ligada à decência do “liberalismo internacional”, antes mesmo de influenciadores do novo entretenimento virarem “símbolos do anti-bolsonarismo” ou a direita midiática condenar Bolsonaro em nome de valores liberais; isto ocorre tanto no terreno político em geral, com uma série de forças políticas que defendiam o governo, como dentro de organizações de esquerda que possuem seus “modernizadores” neoliberais. E no fim, mesmo com tanto poder, sabemos que os militares estão no capitalismo e como oposição aos que dizem que “o que importa é o plano simbólico”, lembramos que os próprios militares se convertem em mercadoria, que viaja de acordo com um valor de troca, um objeto que não se valoriza pelo seu conteúdo positivo, mas pela sua diferenciação frente a outras mercadorias. Sic transit gloria mundi (assim transita a glória do mundo). 

No campo internacional, desde a publicação deste livro, assistimos também a repetidas demonstrações de que a “carta no coturno” que descrevemos para nosso País talvez tenha um caráter continental. O caso mais emblemático foi o da Bolívia. Neste país, em outubro de 2019, grupos civis de extrema-direita, conformados em agrupamentos como o Comitê Cívico de Santa Cruz e a União Jovem Cruceñista, foram a ponta de lança de um golpe contra o presidente reeleito Evo Morales, que contaria com o apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a conivência dos veículos de imprensa internacionais, com motins policiais e movimentações de políticos, e que se consolidaria, por fim, com o “pedido” de renúncia endereçado a Evo Morales pelo Alto Comando das Forças Armadas. Pouco tempo depois, um general colocava a faixa presidencial sobre o peito da presidente golpista Jeanine Añez. A última vez que isso ocorrera no país foi em 1980, depois do assassinato do líder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz e a ascensão do general Luis García Meza.

Além de demonstrar a invalidade e inconsistência dos argumentos segundo os quais os golpes militares haviam ficado no século passado, o caso boliviano nos demonstra que o imperialismo não vacilará em utilizar deles para perseguir seus objetivos geopolíticos. O golpe na Bolívia não foi um acaso, e não foi motivado simplesmente pelo país ser governado por um presidente de esquerda: pelo contrário, foi motivado pela importância geoestratégica do país dentro do continente e pelas relações comerciais e estratégicas que mantinha com a China e a Rússia.

No Peru, em setembro de 2019, o presidente Martín Vizcarra decidiu dissolver o Congresso. Em resposta, foi desautorizado pelos congressistas, que o suspenderam e colocaram a vice-presidente Mercedes Araóz em seu lugar. A decisão de uma situação excepcional veio por forma demonstrativa de que aquelas coisas arcaicas, do passado, podem caminhar juntas com o que há de mais novo: a Presidência publicava uma foto em seu Twitter oficial na qual o Vizcarra aparecia à mesa com os comandantes do Exército, Marinha, Força Aérea e Polícia Nacional, corporações que emitiram pronunciamentos reconhecendo-o como legítimo presidente. Ao fim, as fardas pixelizadas nas telas pesaram mais do que os votos do Congresso.

No Equador, em outubro do mesmo ano, uma gigantesca rebelião popular contra o pacote de medidas de Lenín Moreno, exigidas pelo Fundo Monetário Internacional, fez com que o presidente se retirasse de Quito, transferindo a sede do governo para Guaiaquil. De lá, também posou para fotos com comandantes militares atrás de si. Seguiram-se decretos estabelecendo o toque de recolher e a militarização da capital. 133 policiais ficaram feridos, e do lado dos manifestantes houve entre 8 e 11 falecimentos, 1.500 feridos e mais de 1.300 detidos.

No Chile, amplas e combativas manifestações, iniciadas também em outubro, foram respondidas pelo presidente Sebastián Piñera — considerado por alguns como um liberal comportado, diferente de “populistas” como Bolsonaro — com o furor do estado de emergência, do toque de recolher, e de três mil militares nas ruas de Santiago. A segurança pública da capital também foi posta a cargo de um general. Houve ao menos 34 mortos, 3.400 feridos e quase 9 mil presos ao longo da jornada de manifestações.

Em El Salvador, em fevereiro de 2020, o presidente Nayib Bukele ocupou, com o apoio de tropas do Exército e da Polícia, o Salão Azul do Congresso Nacional, após pressionar os deputados e chamá-los de delinquentes e “sem-vergonhas que não querem trabalhar”. Proclamou: “está muito claro quem tem o controle da situação”. Estava, de fato.

Não nos parece lícito afirmar que uma tendência observada em tantos países seja uma mera casualidade. Também é de se duvidar daqueles que pensam se tratar apenas de um conjunto de processos nacionais desconexos de uma realidade internacional.

Revisar a dimensão filosófica, no entanto, é inadiável. A filosofia faz parte de um pensamento mais geral, de um grande campo da ideologia — como compreendia bem o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, a reflexão filosófica e as ideias estão associadas à formação nacional. Nossa primeira base para enxergar e interpretar o problema da força militar é a do realismo político, a partir de uma concepção de poder que introduzimos logo de início; esta também foi a nossa primeira tentação, pois seria possível fazer um livro inteiro sobre realismo político e a questão do poder, mas foi necessário se conter em prol do problema central. A ideia de poder aqui é relacionada à força, à política e à guerra. Existem muitas formas de enunciar a proposição sobre a relação da política com a guerra, muitas formas de explicar e desenvolver, mas já iniciamos o livro colocando esta como nossa premissa, trabalhada de uma maneira especial, figurativa, que bem logo é seguida pela discussão que é tema do livro. É em referência à violência, a ameaça de guerra, que é possível entender a carta no coturno. Nesse caso, a nossa filosofia serve a uma tarefa não filosófica: a obra, como o trabalho da Revista Opera, procura expressar o trabalho de análise política, conforme modelos de think tanks, as grandes revistas gringas do tipo Foreign Policy e as análises de risco que servem às consultorias, o que pressupõe uma linguagem própria, mais simples e em que o analista se expõe mais. Também temos como referência o velho jornalismo de polêmica, dos jornais publicistas, do jornalista-escritor-político, principalmente de sua tradição latina — e, claro, o novo jornalismo. Se existe o fato, uma ideia, papel e tinta, só resta ao jornalista escrever — e se a política existe sempre com a guerra espreitando, escrevemos lembrando que esta pode ser uma atividade que de certa forma substitui ou remedia a guerra, quando debruçados sobre o teclado ou empunhando uma caneta. Ainda que esta concepção possa ser sujeita a críticas, ela é uma das formas fundamentais de compreender a política.

As intervenções políticas dos militares não são unilaterais, uma via de mão única. A lógica não é “eles têm as armas; eles vão governar”, mas sim uma que atente para as possibilidades abertas pela crise e o significado que a força tem no jogo de poder. Nada disso é ignorar as dinâmicas de poder ideológico, de hegemonia — muito pelo contrário, nossa preocupação é a preeminência do partido fardado em um novo bloco histórico de poder hegemônico. E aqui está nossa segunda tentação, oferecida pela possibilidade de se estender nos problemas ideológicos, discursivos e doutrinários — o que descrevemos sobre o pensamento da política militar e suas doutrinas é só um pequeno exemplo. O pensamento de Antonio Gramsci é uma referência importante e que poderia ter florescido mais na obra, com mais tempo e mais páginas, para discutir hegemonia e para pensar na questão do poder a nível internacional, o que sempre foi uma das preocupações centrais na Revista Opera. No caso, militarismo como chave das relações internacionais cada vez mais belicistas e os reflexos disso na política interna, fortalecendo grupos militares ao redor do mundo. Gramsci para discutir se entramos em uma espécie de nova era cesarista, com seus guerreiros e demagogos; se há uma reorganização do capitalismo mundial e do próprio sistema de poder global, do sistema de poder imperialista, não podemos contar com “os tempos são outros”, mas esperar as transformações violentas. Não obstante as possibilidades, é neste contexto e inspirado por esses problemas que vive o Carta no Coturno. A desordem mundial, as brigas nacionais: o trabalho da Opera, especialmente desde 2014, é já partir do pressuposto de distúrbios, instabilidades e transformações, não da normalidade. Existe o fortalecimento da tendência de ruptura, o que por sua vez traz as tendências de dissolução, cesarismo e bonapartismo. O próprio populismo renovado é sintoma disso, e um dos sintomas menos violentos e mais democráticos. Num jogo de forças centrífugas e centrípetas, o Brasil tanto é atraído para um centro de instabilidade como é arremessado para uma extremidade caótica. A situação brasileira é indissociável nesse terreno internacional e aqui se destacam, na nossa análise, os militares, e isto vem se comprovando. 

O problema interpretativo que o Carta no Coturno traz para a reflexão política é do binômio força e consentimento, que se articula na noção frequente de “disputa pela exceção”, que também pode ser muito profícua por si só. Nossa terceira tentação. 

Notamos bem o confronto entre STF e militares naquele momento, mesmo que céticos sobre a capacidade do STF, que já mostrou na nossa história sua serventia para chancelar golpes. Se no mundo político, no confronto, surgem aberturas que estão à margem da lei e o regime, a forma de fazer as coisas, não cuida dessas aberturas, temos uma situação de excepcionalidade, em que bases de poder disputam a capacidade de decidir nessa exceção e reorganizar a ordem. Este conflito tem um significado político formativo na história: a formação do Antigo Regime na França e a superação do feudalismo antes da Revolução Francesa se deu em confrontos da Coroa com os parlements, poderosas cortes regionais, aristocráticas, com a corte de Paris servindo como uma espécie de suprema corte, confrontos que às vezes assumiam uma forma violenta como nas guerras das Frondas; para conseguir passar legislação que era bloqueada pelos juízes, o rei obrigava-os a se reunir.  Na Revolução Francesa, essas cortes foram dissolvidas, jacobinos e bonapartistas criaram um novo sistema judiciário, e os próprios revolucionários lutaram guerras civis, divididos entre federalistas e defensores do poder central, entre radicais e moderados, progressistas e conservadores.  Assim, lembramos não só dos conflitos sociais que se cristalizaram em conflitos do poder central com poderes judiciários, mas também dos conflitos federalistas, entre estados e poder central, entre capital e interior — todos esses conflitos foram uma lógica constituinte em movimento através da excepcionalidade, movimento que se expressa tanto como violência quanto como legitimação. Da mesma forma, as primeiras constituições liberais e republicanas da América Latina serviram como mapas referenciais para os conflitos políticos e sociais dos seus respectivos países — se enganam os que narram as guerras civis que se seguiram, como as que ocorreram no México e na Colômbia, como o fracasso de uma utopia, uma negação das constituições, já que essas constituições orientavam as diversas forças que se levantavam em armas. Estas disputas são ao mesmo tempo de força e legitimidade, e estão além da legalidade, apesar de operarem também em terrenos jurídicos, se concretizarem em proposta legais. Em nossas críticas às obsessões legalistas e constitucionalistas liberais, não somos assim tão excepcionais, como alguns parecem crer: muito dessa crítica já tem seus precedentes na política popular brasileira em leituras sobre direito insurgente contra o fetichismo da lei. Nós só trouxemos uma outra abordagem específica do problema da dialética entre constituído e constituinte — há não correspondência entre a lei e a realidade, as rachaduras no poder que reduzem o poder das normas abrem uma possibilidade ordenadora. Essa possibilidade, que é incompatível com o imobilismo conservador, não é só aproveitada pelos reformadores, progressistas e revolucionários, mas pelas forças mais reacionárias também. A violência se relaciona com o fenômeno do poder também como um momento de degeneração e ruptura: se o poder tenta estabelecer continuidade, ordem e obediência com a hegemonia, a violência mostra uma espécie de falência, um movimento na estrutura. A sanção violenta e coercitiva, porém, serve como uma ameaça constante dentro da organização do poder hegemônico e o esforço por evitá-la faz parte do processo de estruturação desse poder — por isso insistimos que, no nosso caso específico, é necessário entender a “Carta no Coturno” como uma ameaça, um blefe, que gera poder como uma carta guardada “na manga” (no coturno, no caso), não só na concretização de um golpe. Por isso, o golpismo militar tem um sentido maior do que o problema empírico dos generais que ganham mais poder, pois esse fato tem consequências mais amplas, políticas. Os próprios militares operam para expandir seu poder além dessa ameaça de sanções violentas, ocupando posições no Estado e produzindo ideologia.

As pequenas notícias diárias de ontem negavam uma ascensão militar. Hoje, a reconhecem, mas não consideram-na em todo seu peso. Quando tomam o fenômeno militar como um perigo, olham para 2022 como o momento de uma grande redenção. Se negam a perguntar o que os militares fariam se ela viesse. Voltariam aos quartéis? Aceitariam ver reduzida sua influência política? Por que o fariam, quando são, sozinhos, aqueles que podem imprimir sua vontade pela força das armas, contra uma miríade de atores que, quando muito, frente a eles só se atrevem a usar da palavra, quando não os reconhecem como uma alternativa? Assim, neste último caso, sequer da ameaça de força precisam – já a são.

A grande virtude de nossa análise foi olhar à realidade não como os fatos de ontem, mas olhar tais fatos como sinais do amanhã, usando-os como lentes, não como objetos parados. Foi compreender os atores não como agrupamentos casuais que a História formou, mas como tendências que a História poderia ou não premiar. Nos impressionamos ao voltar os olhos a 2016 e constatar que coisas tão pequenas para as páginas de jornais à época, como a repressão contra determinadas manifestações de rua, a atuação de policiais federais e juízes contra discussões e atos acerca do impeachment e a recriação do Gabinete de Segurança Institucional, foram o germe de nossa análise de tendências.

Mais do que uma mera descrição da ascensão do Partido Fardado, nosso livro fornece ensinamentos para a análise da política nacional. E esses ensinamentos, se nos permitiram antever essa ascensão, não nos permitem hoje dizer que ela chegou a seu pico, muito menos que, daqui para a frente, tenderá a morrer. Nesse sentido, negamos a ideia de que o governo Bolsonaro significaria, para os militares brasileiros, o que as Malvinas significaram para os argentinos. Somos críticos de tal comparação, que desconsidera a realidade política internacional e o momento histórico. Primeiro, o fim da ditadura argentina em 1983 seguia uma tendência histórica que se manifestava naquela década em diversas ditaduras no continente, como Bolívia (1982), Uruguai (1985), Paraguai (1989) e Chile (1990). Em segundo lugar, foi a impopularidade do regime militar argentino, depois de 7 anos de governo da Terceira Junta militar e num contexto de crise econômica, que impulsionou os militares à aventura nas Malvinas. Atribuir às Malvinas a razão de sua derrocada é inverter a verdade. Por fim, durante a Guerra das Malvinas o apoio dos países europeus e dos EUA foi dado à Inglaterra, não à Argentina, isto é; o interesse geopolítico dos Estados Unidos era de um fim rápido para a guerra, que na visão da administração Reagan poderia levar a um posicionamento soviético na questão ou a uma queda de popularidade ainda mais abrupta do governo de Margaret Thatcher, que concorreria naquele ano. Entre seus gorilas argentinos e a Dama de Ferro, os Estados Unidos ficaram com a última.

O que vemos hoje, no Brasil, é precisamente o contrário. A tendência histórica que se manifesta no continente é da crescente militar. A popularidade dos militares e das Forças Armadas no Brasil, a despeito de uma ligeira queda, continua muito mais alta do que a do Congresso e dos partidos políticos, por exemplo. Ainda que seja provável que os militares acabem por manchar sua reputação — aliás, é uma das previsões que fizemos –, um eventual recuo do Partido Fardado não pode ser confundido e motivar anúncios de morte. A propósito, é possível que o manchar da reputação sirva, precisamente, como razão para um avanço. Por fim, o interesse geopolítico norte-americano, neste caso, não se aplica contra os militares, mas pode ir ao seu encontro. 

A partir daqui podemos nos afastar do autoelogio e passar à autocrítica. A tese que o leitor poderá testemunhar à frente, que coloca a ascensão militar como um reflexo da agudização de um novo conflito global, de retorno agressivo da Doutrina Monroe por parte dos norte-americanos frente ao avanço chinês em todo o mundo, foi acertada. Mas faltou dar uma descrição mais específica desse processo, tanto nativo quanto internacional.

É verdade que os Estados Unidos não desejam que a influência chinesa em nossa região, considerada sob a Doutrina Monroe seu quintal e espaço estratégico vital, continue a expandir. E é natural que, para fazê-lo, como mencionamos no livro, cheguem a expandir seus investimentos em infraestrutura na América Latina. No entanto, antes disso — e isso não percebemos a tempo da primeira edição — devem aumentar sua participação na produção de commodities no Brasil, por meio da expansão da fronteira agrícola e a posse direta de terras. Assim, teriam o controle direto sobre as relações comerciais Brasil-China, e inclusive se desejassem mantê-las intactas, se colocariam em uma posição de intermediários econômicos e políticos. Em caso em que essa Segunda Guerra Fria se torne quente, teriam ainda o controle direto de recursos estratégicos, em especial no caso dos minérios. Nesse sentido, o Projeto de Lei 2963, de 2019, parece ser o aríete de uma “bananização” da República brasileira. O projeto facilita a venda de terras a estrangeiros, estabelecendo 25% de cada município como limite. Um aspecto bastante sugestivo da lei é o fato de apregoar que a posse de terras no bioma amazônico por parte de estrangeiros dependerá de autorizações do Conselho de Defesa Nacional (CDN). É de se notar que a Lei 8.183/91, que dispõe sobre o CDN, estabelece em seu 4º artigo que “cabe ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República executar as atividades permanentes necessárias ao exercício da competência do Conselho de Defesa Nacional”. Hoje, o secretário do Conselho é o sr. general Augusto Heleno. Embora o CDN seja constituído de membros do Executivo e do Legislativo, não é exagero dizer que, se o PL 2993/18 for aprovado, os interesses estrangeiros no que se refere à posse de terra na Amazônia passarão diretamente pelas mãos dos militares. 

A Amazônia é, aliás, outro tema do qual não tratamos. O leitor testemunhará nesse livro frases sobre Nero e bombeiros da história, mas não imaginávamos que a coisa tomasse um contorno tão literal que os ensinamentos das metáforas se anulassem.

Em agosto de 2019, a fuligem das queimadas no Norte e Centro-Oeste se encontrou com uma frente fria em São Paulo, fazendo o dia virar noite na capital. Aquele era o mês de agosto em que vivíamos o maior número de focos de incêndio na Amazônia desde 2010. No sul do Pará, se constatou que no dias 10 e 11 de agosto um grupo de fazendeiros e madeireiros fez uma ação coordenada de queimadas, conhecida como “dia do fogo”, dentre outros motivos para “chamar a atenção das autoridades”, entre elas o presidente Jair Bolsonaro.

As queimadas acabaram por chamar atenção de muitas autoridades — inclusive estrangeiras. Da polêmica chegou a participar o general Villas Bôas, que citou Ho Chi Minh contra o colonialismo francês do presidente Emmanuel Macron. O general pareceu não se atentar tão proficuamente à soberania quando da entrega da Base de Alcântara.

Fato é que da crise amazônica os militares saíram fortalecidos. Repetidos decretos de Garantia da Lei e da Ordem garantiram aos militares o controle do território, e o vice-presidente Hamilton Mourão foi apontado para liderar o Conselho da Amazônia. Nesse momento, Mourão é apresentando como um “mediador razoável” para atores internacionais e corporações supostamente interessados na preservação ambiental, não faltando apologistas do papel do Exército como protetor da floresta. Como observamos no livro, Mourão mantém um perfil mais baixo e, quando aparece, é em tom mais conciliador ou estatal, “fala com neutralidade”, se converte em uma espécie de “consenso”. 

A militarização da Amazônia em pouco tempo fará seu primeiro aniversário, sem notícias de que o desmatamento tenha sido impedido. Os militares, como nota Hyury Potter em matéria do The Intercept Brasil, têm mais recursos que o Ibama para o combate — na prática, o instituto e o ICMBio estão subordinados ao comando de Mourão. O repórter nota que os fardados têm privilegiado ações de controle de estradas, pouco úteis ao combate do desmatamento. Observamos que são muito úteis, no entanto, para aqueles que querem ser intermediários do rentismo; basta abrir a porteira para a boiada passar. Ou fazer vista grossa para não ver ouro onde ouro há.

Outro alvo de polêmicas foi o fato de não termos tratado da capacidade de mobilização de bases próprias do presidente e, dentre elas, das polícias militares e das milícias. É certo que Bolsonaro tem capacidade de arregimentar certas bases, bem dispostas a defendê-lo, e que essas bases incluem setores das polícias estaduais, atiradores civis e milícias — não é demais afirmá-lo, já que o presidente e seu entorno deram repetidas demonstrações de serem seus defensores, inclusive concedendo medalhas a milicianos condenados. Contudo, voltamos nossos olhos ao essencial: ainda que estas bases não sejam de forma alguma ignoráveis, elas são secundárias. Ora, se para os críticos são especialmente virtuosas e úteis ao presidente pelas suas armas e capacidade de controle territorial, por que não o seriam mais ainda os militares, que contam com capacidade bélica superior, poder de comando sobre as polícias, programa próprio, cadeia de comando integrada e presença territorial nacional? Por que insistem, esses senhores, em imaginar mais importante o controle sobre comércios, gás e gatonet em Rio das Ostras do que o controle efetivo da Amazônia? Por que querem fazer crer que fuzis traficados do Paraguai pesam tanto quanto obuses e tanques? Não se pode explicar esse tipo de loucura senão pela crença, ou pelo desejo de crer que os militares estão de fato comprometidos com a República. Assim, procuram em outros a razão do medo. Mas é evidente que, para triunfar, uma movimentação das Polícias Militares ou das milícias dependeria ou da concórdia ou da conivência das Forças Armadas. De qualquer forma, aos fardados cabe a decisão – e a decisão de militares pode muito bem casar com ações das milícias.

Uma outra crítica recebida foi sobre menosprezarmos o tema da Guerra Híbrida. Consideramo-la injusta, já que o fenômeno é mencionado em passagens breves no livro. Não nos aprofundamos na questão porque a consideramos um dos elementos de uma análise mais ampla, que diz respeito a um fenômeno político maior, que remete em última instância ao problema do poder. Hoje já há bons e aprofundados trabalhos sobre o tema, como O Brasil no espectro de uma guerra híbrida, de Piero Leirner. Ainda assim, mantemos uma posição crítica frente a simplificações e vulgarizações nesse tema — bastante distantes do trabalho de Leirner, deixemos claro –, e acima de tudo consideramos que uma resposta a tal fenômeno não poderá ser um espelho dele. As operações de caráter psicológico-cognitivo e ideológico, feitas por militares em um contexto de comunicação de massas e tecnologia, são armas daqueles que já têm armas. É preciso responder sempre tendo isso em consideração, e para nós tal resposta depende de um trabalho político voltado à organização e arregimentação de bases. Consideramos que a neutralização de um emissor de caos, no campo comunicativo, passa necessariamente pela formação de receptores coletivos. E sua derrota, como fenômeno político, pela organização de tais receptores. O “tronco” da teoria expressa aqui, que divide o poder em três fontes correlatas, não nos permitiria dizer que será replicando a estratégia de nosso inimigo que venceremos — assim como, na guerra, para a derrota de um exército regular é necessário opor um exército irregular; à guerra de posição se opõe a de movimento, etc. Nós podemos dizer que nosso livro é uma contribuição importante para o mesmo problema que os que falam de “Guerra Híbrida” querem tratar, mas com uma concepção distinta — nossos apontamentos de Clausewitz já servem para iniciar uma conversa sobre um espectro ampliado da guerra sem usar o conceito de “Guerra Híbrida” e, principalmente, sem o conceito fraco de “Guerra de Quarta Geração”. Este tema deve ser acompanhado por uma discussão mais profunda sobre a estratégia dos Estados Unidos, sua atuação de “espectro total” e seu projeto de integração de forças, que tem até o momento adesão de nossas Forças Armadas, o que deve ser objeto tanto de reflexões acadêmicas como de considerações políticas. Além disso, isto toca em outro objeto de nossa preocupação interna, que é o papel das forças de inteligência nesse processo de fortalecimento dos grupos militares, a começar pela reorganização do Gabinete de Segurança Institucional, mas incluindo a inteligência do Exército e a busca por capacidades de informação no mundo digital e de monitoramento de celulares; a força das armas não é só sobre fuzis e tanques, mas sobre capacidades de guerra suja, a formação de um serviço de “segurança de Estado” formado pela velha-porém-renovada Doutrina de Segurança Nacional — a “tigrada” da comunidade de inteligência já pensava em guerra suja e desinformação desde antes da ideia de Guerra Híbrida. Os militares usam a expressão “Guerra Híbrida” acompanhando seus pares dos Estados Unidos, que denunciam o que seria uma “nova invenção” da Rússia e da China para fazer guerra indireta, com o modelo sendo aplicado contra grupos políticos de esquerda e movimentos populares no Brasil. Isto é, são militares de direita que adotam essa noção para reafirmar os temas da Doutrina de Segurança Nacional e adotar os métodos “híbridos” em nome de um esforço defensivo. 

O próprio capítulo sobre Boyd brinca com as analogias e convergências entre estratégia e filosofia, sendo uma espécie de exercício de criatividade estratégica para introduzir as concepções boydianas em um estilo boydiano. As breves, rápidas teses na parte final podem parecer algum experimentalismo ousado que sacrifica a criação de um bloco mais analítico no livro, um rasante político. A começar pela primeira tese: o adesismo aos militares, como se fossem os santos desse governo, continua sendo um problema, o partido fardado ainda tem apologistas na esquerda. Apesar dos elementos provocativos de algumas colocações, insistimos que suas considerações foram válidas sobre os riscos que a oposição a Jair Bolsonaro traz no seu bojo, como as performances espetaculares feitas sob medida para a sociedade de consumo mas que buscam justificativas filosóficas em pensamentos revolucionários — enquanto uns social-democratas com afã de estadistas e realistas defendem os militares achando que isto é o mesmo que defender nossa soberania e a saúde de nossas Forças Armadas, do outro lado pretensos radicais acham os militares um problema menor. 

Pregamos a necessidade de se organizar, construir redes, relações, capazes de criar bases de poder; a ideia de que se o poder se reorganiza com estruturas, é preciso ter as estruturas paralelas, nacionais, vivas, contra a força burocrática e militar que se alia a uma força capitalista estrangeira — aqui dialogamos com lições clássicas da organização política e as lições de Clausewitz e John Boyd. Por outro lado, de forma curiosa, uma parte de nossa argumentação pode lembrar certas posições de dissidentes do Leste Europeu. O tcheco Vaclav Benda pensou em um “polis paralela”, capaz de fazer redes voltadas para a atuação política. Outra figura seria a de Vaclav Havel, também tcheco, que formulou uma estratégia para minar o consentimento voluntário dos indivíduos ao regime comunista de Praga e seus rituais, resumindo seu posicionamento político e filosófico a “viver a verdade”. Os dois tchecos compõem uma ideia de política prefigurativa e as ideias dessa dissidência, junto com a imagem do Solidariedade polonês, influenciaram democratas e a esquerda reformista no Brasil. Alguns brasileiros até argumentam que os acontecimentos no leste europeu são uma referência de “revolução dos direitos humanos” e criação de uma ordem constitucional nova sem violência — ignorando que Boris Yeltsin exigiu “altos padrões patrióticos” do exército e bombardeou o parlamento russo, ou que Ceausescu sofreu um golpe de seus serviços de segurança, dentre outros exemplos, como o próprio peso que as tropas soviéticas representavam para a sustentação daquele ordenamento europeu. Apesar disso, junto com Havel viam uma sociedade civil pura, idealizada, até despolitizada, unida pelo ideal civil contra a figura monolítica de um estado opressor, quase como se essa oposição saísse da natureza ou caísse do céu. O que devemos enxergar no Leste Europeu antes ou no Brasil agora — o que é ignorado pela ingenuidade haveliana de nossos democratas — era a situação político-estratégica, em que os atores se posicionam em uma correlação de confronto: os dirigentes, bases de poder na sociedade (seja as organizações do partido dominante ou o mundo paralelo da dissidência), e as forças de segurança. Todo confronto tem suas mediações. O que Havel e Benda faziam com sua polis paralela de artistas e dissidentes não era uma cidade moral utópica, mas uma rede de poder paralelo capaz de disputar a legitimidade com os poderes centrais, ou seja, a partir de suas idealizações pelo menos engendraram um método funcional. Por sua ingenuidade que Havel terminou com um liberal de tipo péssimo, um apologista da “nova OTAN”, apoiando bombardeios ilegais contra a Iugoslávia e justificando-os com palavrório sem sentido, idealista, um apelo despolitizado aos direitos humanos: é este tipo de resultado que queremos evitar de nossos próprios liberais idealistas na esquerda, que já flertam com militares ou com salvadores externos. A solução não vem de política prefigurativa idealista e nem de legalismo engajado, mas da estratégia e do golpe de força. Se nossos avisos são em vão, pois que seja: também cumprimos uma tarefa ética procurando a verdade e dizendo o que deve ser dito. 

Hoje, o livro precisa ser lido à luz da pandemia, uma crise grave que coloca os militares em uma nova posição importante, mas ao mesmo tempo frágil. O Alto Comando do Exército, na voz de seu comandante Edson Leal Pujol, deu um posicionamento reconhecendo a gravidade da pandemia enquanto Bolsonaro a subestimava em público — segundo o Exército, esta pode ser “a missão mais importante de nossa geração”. O Exército assumiu a “Operação COVID-19”, levada a cabo pelo Ministério da Defesa; na resposta federal, comanda a articulação o general Braga Netto, e cumpre um papel importante o general Oswaldo de Jesus Ferreira, presidente da EBSERH (que reúne os hospitais universitários federais) e que foi um dos generais do núcleo de campanha de Bolsonaro. Naquele momento, falamos de decadência de instituições políticas, que os problemas não eram mais rotineiros, porém “caóticos”, situação que é mais grave e sensível se pensarmos no momento pandêmico, e não por menos tivemos semana atrás de outra ameaças abertas de intervenção militar e posicionamentos do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. Nos perguntamos sobre “uma situação de crise econômica severa e prolongada”, questionando sobre a resiliência das instituições, e agora temos uma crise econômica e pandêmica. Confrontos institucionais a que nos referimos, como votações no Congresso, apareceram com nova face com a pandemia, e por um momento os governadores ensaiaram um movimento contra o presidente. É verdade que a pandemia de certa forma freia certos conflitos, ao criar uma nova camada de preocupações devido à calamidade mundial, mas isso não quer dizer que ela não tem efeitos deletérios. Falamos que os conflitos já estão passando de “discordâncias no meio do caminho” para expressar a “degradação do caminho” em si, porém os atores políticos que querem ganhar a partir dessa excepcionalidade, como os militares, querem gerir tanto essa degradação como querem gerir a ruptura — por isso não é do interesse dos militares simplesmente dar um golpe de acordo com seus humores, já que também fazem seus cálculos de médio e longo prazo para ganhar o máximo de poder pelo menor custo possível. Na nossa autocrítica possível, podemos dizer que não trabalhamos tanto com a hipótese dos militares seguirem com Bolsonaro como uma peça importante, enfatizando mais cenários em que Bolsonaro sai de cena — ainda assim, ainda consideramos a hipótese em que Bolsonaro se mantém, mas isto depende dos militares. O problema é que grande parte dos analistas continua tendo Bolsonaro como sujeito principal e razão referencial, determinante de suas análises, então sempre estão perguntando sobre como os militares estão com Bolsonaro, pensando nos militares em relação a Bolsonaro. Enquanto se preocupam com a troca de ministros militares, a própria instituição se torna politicamente mais forte, autônoma e suas instituições se multiplicando e se expandindo, como acampamentos dentro do Estado.

A vida está em constante fluxo, em transição. Pensamos de acordo com a dialética: mais em termos de movimento e contradição do que em termos de fixação, por isso não podemos aceitar a redução da política a fantasias legalistas ou os empirismos que enxergam apenas indivíduos; contemplamos a realidade de um devir acidentado, de criação e destruição, porém dentro de uma totalidade de encadeamentos diversos. Por mais que o mundo concreto seja conflitivo, com incongruências e padrões caóticos, buscamos criar sínteses sem ceder à tentação de uma simplicidade abstrata. Sabemos que o tempo, inexorável, pode devorar este livro, mas por ora ele segue fecundo.

André Ortega

Pedro Marin

18 de julho de 2020